No planalto da Serra dos Órgãos, onde hoje se encontra a cidade de Teresópolis, no Estado do Rio de Janeiro, nasceu em 21 de agosto de 1838, o menino Guilherme Taylor March. Era filho do cidadão inglês George March, nascido e criado em Portugal, e de Ignácia March, brasileira de descendência africana.
Deste casal, o primogênito, seis anos mais velho do que Guilherme, chamava-se George Brittain March. Os nomes Brittain e Taylor homenageavam os respectivos padrinhos, conforme o costume da época. Assim, Guilherme era afilhado do vice-almirante John Taylor, amigo de seu pai, que acompanhara ao Brasil o almirante Cochrane, comandante por alguns anos da frota imperial brasileira.
Seu pai adquiriu uma sesmaria, destinando-se à criação de cavalos de raça e cultivo de cereais. A propriedade passou a chamar-se Fazenda de March, dando origem à cidade de Teresópolis.
Deve-se a George March o hábito de veraneio na serra. Costumava promover, no verão, festas e piqueniques, convidando seus inúmeros amigos padecentes do desconforto da calorenta e empoeirada Corte.
Falecendo George March, ficaram os filhos entregues às incertezas do destino, uma vez que a genitora já deixara a vida física antes do marido, embora este lhes tivesse legado considerável fortuna.
O primogênito, com 18 anos, cuidaria dos próprios interesses.
Ao pequeno Guilherme, com 12 anos, foi-lhe nomeado um tutor, que não poupou esforços na sua educação. Interno no Colégio dos Padres Paiva, no Rio de Janeiro, e depois matriculado na Faculdade de Medicina da Corte, terminou o curso com brilhantismo, em 1859. Diplomado, tomou conhecimento de que se encontrava pobre: as suas vastas e ricas propriedades haviam passado a outras mãos e não havia, a seu crédito, nenhum depósito bancário. Atribuiu o ocorrido a negócios infelizes tentados pelo seu tutor.
Esta desilusão seria para muitos uma irremediável desgraça, suficiente para aniquilar o ânimo de um jovem que viera ao mundo cercado de bens materiais, que se vira privado do carinho materno ainda criança e, ave ainda implume, perdera o pai. Agora, que chega à maioridade e lhe entregam a direção de sua própria vida, encontra-se só e de mãos vazias para iniciar a jornada.
De escol, porém, era a sua alma e não se intimidou com as agruras da vida. Não possuía o diploma profissional com que poderia ganhar o pão de cada dia? Assim, atirou-se ao trabalho com fé e coragem.
Dr. March iniciou sua carreira como médico homeopata. É importante esclarecer porque se interessara por esse sistema de curar, hostilizado nos meios médicos da época. Quando cursava o último ano de medicina, residira numa pensão e fora acometido pela varíola. Teria, assim, de ser removido para um hospital. Para evitar isso, a proprietária da pensão, espírita convicta, com sua aquiescência, ocultou-o em cômodo afastado da casa e assumiu o seu tratamento, medicando-o com homeopatia, sem assistência médica.
Os adeptos do Espiritismo exerciam, livremente, a medicina homeopática, sem perseguição das autoridades médicas, certamente por não temerem a concorrência de uma terapêutica até então tida como inócua.
Tendo sido curado sem nenhuma sequela, o jovem estudante tomou-se de simpatia pela ciência de Hahnemann e logo iniciou a estudá-la com afinco e desvelo.
Uma vez diplomado, adotou a homeopatia como prática clínica, cuja eficácia havia constatado.
Pelos imperativos da profissão, tão logo tomou contato com a miséria e o sofrimento, pôde ver claridades divinas balsamizando as chagas que cruciam os corpos, almas e corações, compreendendo que o verdadeiro Deus era inteiramente estranho àquele que conhecera no colégio. A divina justiça baseara a diversidade do destino do homem em razões poderosas que correspondiam aos interesses de cada um deles.
Onde encontrar explicação filosófica dessas verdades?
Na memória lhe surgiram as duas figuras que agitaram a sua mocidade de modo marcante e inconfundível: sua hospedeira, dedicada enfermeira, curando-o da pertinaz enfermidade, e o velho Nascimento, médium receitista, que enxugava lágrimas e espalhava sorrisos com as curas que operava através da homeopatia, sem ser médico. Ambos eram espíritas…
Passou a estudar as obras de Allan Kardec e tornou-se adepto da nova Doutrina. O Espiritismo pede apenas que o estudem, pois quem o fizer, sem ideias preconcebidas, mas desejoso de encontrar a verdade, tornar-se-á um de seus seguidores.
Dr. March absteve-se de pregar a Doutrina Espírita pela palavra, talvez para não chocar opiniões de parentes e amigos, mas pregou-a através dos seus atos e exemplos, uma vez que se deu inteira e ostensivamente ao serviço da caridade e do amor ao próximo.
Casou-se com Francisca de Paula Corrêa na cidade do Rio de Janeiro e logo se transferiu para Niterói, onde residiu no bairro do Barreto. Mais tarde, passou-se para a Rua Santana 51, em modesta casa porque a pobreza o levou a reduzir as despesas.
Teve nove filhos – sete rapazes e duas moças.
Foi clínico do consultório homeopático da Santa Casa de Misericórdia, sem vencimentos, sendo posteriormente remunerado com cinquenta mil réis mensais.
Dada sua dedicação à causa da caridade e seu espírito de renúncia, auferia resultados pecuniários reduzidos em sua própria clínica, e destes, grande parte destinada ao socorro dos menos afortunados.
Sua situação econômica foi agravada por outra insidiosa moléstia que o acometera na mocidade e começava a tolher-lhe os movimentos. Foi quando se deu um fenômeno social: o povo vendo nele o missionário do bem em dificuldades acorreu em seu auxílio.
A população de Niterói adquiriu, por subscrição pública, o prédio da rua de Santana 14, hoje Benjamim Constant, e doou-o ao grande filantropo.
Tomando posse da casa, abriu-lhe as portas para que por ela entrassem livremente os deserdados da sorte. Costumava dizer “Esta casa não é minha, mas de todos os que não têm teto”.
Com a enfermidade avançando inexoravelmente, atendia os pacientes em seu quarto de enfermo. Sua esposa e familiares manipulavam o receituário homeopático e o distribuía gratuitamente.
Os pacientes pobres vindos de municípios do interior pernoitavam na casa do humanitário médico, cujas portas jamais eram trancadas.
Foram 63 anos de atividades médicas, numa dedicação sem par. Abdicava de todo interesse material, entregando-se dia e noite, sem fadiga ou revolta, à tarefa sublime de minorar o sofrimento alheio. Foi cognominado “Pai dos Pobres”. Quem o visse curvado pelo sofrimento físico a enxugar lágrimas dos pacientes, poderia dizer: “Estranho homem esse, que esquece a própria dor para aliviar a de outrem. Talvez seja um santo…”
Seus familiares, entretanto, sabiam tratar-se de um simples espírita, procurando cumprir a recomendação do Divino Médico: “Amai-vos uns aos outros como eu vos amei”.
Dr. March despediu-se da vida física no dia 21 de junho de 1922, após 84 anos de vida laboriosa, inteiramente dedicada ao bem e à fraternidade.
O povo acorreu em massa e carregou-lhe o féretro nos braços até o cemitério de Maruí, onde o sepultaram sob flores e lágrimas.
O poder público custeou-lhe os funerais num reconhecimento e homenagem à humildade, à pobreza daquele homem que se doara ao semelhante.
O jornal O Fluminense publicava, em 22 de junho de 1922, um artigo intitulado “O fim da existência de um benemérito da humanidade”.
A cidade de Niterói perpetuou-lhe a memória dando seu nome a um logradouro público.
A Federação Espírita do Estado do Rio de Janeiro fundou e mantém o Instituto Dr. March, creche que atende cerca de 200 crianças carentes, de dois a seis anos.
É interessante notar que a vida de Dr. March tem marcante analogia com a de Dr. Bezerra de Menezes. Ambos foram médicos homeopatas; participaram da vida política eleitos à vereança pelo Partido Liberal, em épocas diferentes e começo de vida profissional; professaram o Espiritismo; foram pobres e dedicaram suas vidas aos enfermos e desvalidos.
Assim como Dr. Bezerra de Menezes, Dr. March com a sua vida de renúncia e sacrifício soube honrar a Medicina e a Doutrina Espírita, como verdadeiro Apóstolo do Bem.
Extraído da Revista Internacional de Espiritismo, maio de 2002, páginas 199 e 200